O texto abaixo foi publicado em 1999 e registra um
depoimento feito pelo escritor português José Saramago num congresso sobre a
língua portuguesa realizado naquele ano. É interessante lembrar que há 14 anos
atrás não existia a “guerra contra o terror”, o “mundo” ainda comemorava a
queda do muro de Berlim e o “fim” da ideologia que ele sustentava... era um
mundo sem barreiras, sem “efeito estufa” e de um neoliberalismo “vencedor”.
JOSÉ SARAMAGO, escritor português, Prêmio Nobel de
Literatura de 1998* – “A primeira coisa que espero é que entendamos o tempo em
que estamos vivendo. E suspeito que não estamos entendendo. Estamos a viver
este tempo como estivéssemos em 1955 ou 1962. Estamos a viver um tempo que se
quer já é 1999, fim do século. Já estamos no século 21. Estamos numa época em
que vamos deixar de ser quem somos para nos transformarmos em outros. Quem serão
esses outros? Não tenho idéia. Dou-lhes um exemplo que está ao alcance de toda
a gente, porque todos lemos jornais.
É muito freqüente aparecerem artigos de pessoas com as quais
estamos de acordo porque expõem idéias interessantes, opiniões críticas. Por
muita razão que estas pessoas tenham, por esplêndidas que sejam suas propostas,
por muita aguda que seja a crítica que fazem não acontece nada. Porque a
primeira coisa que seria lógico acontecer não acontece. Ou seja, que o jornal
ou a revista que publica esse artigo com o qual até o diretor está de acordo,
eventualmente, mudasse a sua linha editorial.
Tudo acontece como se fôssemos tratados como os bobos da
corte. O escritor hoje é uma espécie de bobo da corte, encarregado de dizer
coisas heterodoxas, politicamente incorretas. Mas simplesmente não se muda
nada. Nós somos a cereja que está aí para enfeitar o bolo e, vá lá, tentamos
enfeitá-lo da melhor maneira possível.
Quando disse, na abertura deste congresso, coisa que se
supõe muita gente sabe, que a Agência de Informação Americana (CIA) grava ou
pode gravar todas conversações telefônicas do mundo transmitidas e veiculadas
por satélite, houve pessoas que eu vi, estavam na minha frente, que ficaram
assim, fazendo cara que não acredita. Uma ou outra rara assentiu. Pois essa é a
realidade, queiram ou não queiram.
Eles estão atentos a tudo. Se eu disser qualquer coisa que
pareça com IRA, ETA, ou se eu disser conspiração, ou se eu disser “às 17h vou
ao dentista”, podem pensar que é um código. O Grande Irmão de Orwell existe. E
não é o comunista, coitados, meros aprendizes cruéis, incompetentes (eu
continuo a ser comunista como toda gente sabe). O Grande Irmão existe e nós nos
comportamos como se nossas conversas telefônicas fossem confidências. Usamos o
cartão de crédito como se fosse uma coisa completamente normal, e não é, porque
se eu pagar em dinheiro em qualquer parte do mundo ninguém sabe onde estou e o
que eu comprei. Agora, se eu pagar com cartão de crédito, sabe-se onde é que eu
andei, o que eu comprei e desenhasse o perfil do consumidor. Porque nós vivemos
no mercado. Somos uma espécie estranhíssima, algo que é vendido, porque é algo
que está comprando. Na medida em que compra é vendido, na medida em que é
vendido, compra.
É para esta consciência que estou a esperar que acordemos. A
manipulação agora não é só da consciência, é também da genética. Corremos o
risco de nos tornarmos habitantes de um mundo virtual, um mundo que não existe
na realidade. E a realidade continua a existir como é. Estamos a precisar de
uma revolução contínua, porque os outros já estão a fazer com a globalização,
capciosa, que não percebemos. É preciso uma revolução do saber, da crítica
sistemática, uma revolução do NÃO. Estamos num deserto de idéias. Os governos
já não mandam nada. São comissários do capital econômico.
O desastre da Angola, da África, é uma das maiores tragédias
da humanidade. Mas, como digo, há guerras com sorte e guerras sem sorte. Uma
guerra com sorte é a guerra do Kosovo, toda gente fala dela. Guerra sem sorte
são, por exemplo, a guerra de Angola, hoje. Foi a guerra de Timor, com 300 mil
mortos, e disso ninguém fala.
Não quero roubar a tranqüilidade de vossas vidas, o que
quero que compreendamos é que não podemos viver tranqüilos. Por isso espero
tudo. Quando digo que nós somos uma pedra esfolada debaixo da qual não há nada,
já é num outro plano, é simplesmente porque temos que morrer e quando acabarmos
ficará a memória durante um tempo e tudo se acaba depois. Quem aqui está a ler
a Ilíada, de Homero? Ninguém! Pois, então. Eu, como escritor, não tenho
responsabilidade. Mas como cidadão sim.”
* Jornal do Brasil, 14/08/1999, Caderno B