domingo, 6 de janeiro de 2013

A Revolução do NÃO


O texto abaixo foi publicado em 1999 e registra um depoimento feito pelo escritor português José Saramago num congresso sobre a língua portuguesa realizado naquele ano. É interessante lembrar que há 14 anos atrás não existia a “guerra contra o terror”, o “mundo” ainda comemorava a queda do muro de Berlim e o “fim” da ideologia que ele sustentava... era um mundo sem barreiras, sem “efeito estufa” e de um neoliberalismo “vencedor”.

JOSÉ SARAMAGO, escritor português, Prêmio Nobel de Literatura de 1998* – “A primeira coisa que espero é que entendamos o tempo em que estamos vivendo. E suspeito que não estamos entendendo. Estamos a viver este tempo como estivéssemos em 1955 ou 1962. Estamos a viver um tempo que se quer já é 1999, fim do século. Já estamos no século 21. Estamos numa época em que vamos deixar de ser quem somos para nos transformarmos em outros. Quem serão esses outros? Não tenho idéia. Dou-lhes um exemplo que está ao alcance de toda a gente, porque todos lemos jornais.

É muito freqüente aparecerem artigos de pessoas com as quais estamos de acordo porque expõem idéias interessantes, opiniões críticas. Por muita razão que estas pessoas tenham, por esplêndidas que sejam suas propostas, por muita aguda que seja a crítica que fazem não acontece nada. Porque a primeira coisa que seria lógico acontecer não acontece. Ou seja, que o jornal ou a revista que publica esse artigo com o qual até o diretor está de acordo, eventualmente, mudasse a sua linha editorial.

Tudo acontece como se fôssemos tratados como os bobos da corte. O escritor hoje é uma espécie de bobo da corte, encarregado de dizer coisas heterodoxas, politicamente incorretas. Mas simplesmente não se muda nada. Nós somos a cereja que está aí para enfeitar o bolo e, vá lá, tentamos enfeitá-lo da melhor maneira possível.

Quando disse, na abertura deste congresso, coisa que se supõe muita gente sabe, que a Agência de Informação Americana (CIA) grava ou pode gravar todas conversações telefônicas do mundo transmitidas e veiculadas por satélite, houve pessoas que eu vi, estavam na minha frente, que ficaram assim, fazendo cara que não acredita. Uma ou outra rara assentiu. Pois essa é a realidade, queiram ou não queiram.

Eles estão atentos a tudo. Se eu disser qualquer coisa que pareça com IRA, ETA, ou se eu disser conspiração, ou se eu disser “às 17h vou ao dentista”, podem pensar que é um código. O Grande Irmão de Orwell existe. E não é o comunista, coitados, meros aprendizes cruéis, incompetentes (eu continuo a ser comunista como toda gente sabe). O Grande Irmão existe e nós nos comportamos como se nossas conversas telefônicas fossem confidências. Usamos o cartão de crédito como se fosse uma coisa completamente normal, e não é, porque se eu pagar em dinheiro em qualquer parte do mundo ninguém sabe onde estou e o que eu comprei. Agora, se eu pagar com cartão de crédito, sabe-se onde é que eu andei, o que eu comprei e desenhasse o perfil do consumidor. Porque nós vivemos no mercado. Somos uma espécie estranhíssima, algo que é vendido, porque é algo que está comprando. Na medida em que compra é vendido, na medida em que é vendido, compra.

É para esta consciência que estou a esperar que acordemos. A manipulação agora não é só da consciência, é também da genética. Corremos o risco de nos tornarmos habitantes de um mundo virtual, um mundo que não existe na realidade. E a realidade continua a existir como é. Estamos a precisar de uma revolução contínua, porque os outros já estão a fazer com a globalização, capciosa, que não percebemos. É preciso uma revolução do saber, da crítica sistemática, uma revolução do NÃO. Estamos num deserto de idéias. Os governos já não mandam nada. São comissários do capital econômico.

O desastre da Angola, da África, é uma das maiores tragédias da humanidade. Mas, como digo, há guerras com sorte e guerras sem sorte. Uma guerra com sorte é a guerra do Kosovo, toda gente fala dela. Guerra sem sorte são, por exemplo, a guerra de Angola, hoje. Foi a guerra de Timor, com 300 mil mortos, e disso ninguém fala.

Não quero roubar a tranqüilidade de vossas vidas, o que quero que compreendamos é que não podemos viver tranqüilos. Por isso espero tudo. Quando digo que nós somos uma pedra esfolada debaixo da qual não há nada, já é num outro plano, é simplesmente porque temos que morrer e quando acabarmos ficará a memória durante um tempo e tudo se acaba depois. Quem aqui está a ler a Ilíada, de Homero? Ninguém! Pois, então. Eu, como escritor, não tenho responsabilidade. Mas como cidadão sim.”

* Jornal do Brasil, 14/08/1999, Caderno B

Nenhum comentário: