quarta-feira, 30 de janeiro de 2013


Trechos do artigo “Lápis e papel na mão”, de Fausto Wolff, publicado pelo Jornal do Brasil em 18/01/2007, no Caderno B.

Não são muitos - felizmente - os leitores que escrevem dizendo que o socialismo não deu certo nem no Haiti, ou que Marx está superado, como se alguma vez sua filosofia humanista houvesse sido posta em prática integralmente. A essência do marxismo está contida numa famosa declaração de 1845, extraída de seus textos: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras. A questão é modificá-lo”.

Isso significa que, para Marx, todos os problemas nasciam do modo como a sociedade era organizada. Só através da justiça social o homem terá condições de ser feliz. Até hoje ninguém me provou que um homem realmente inteligente pode se preocupar com a futura fortuna dos seus bisnetos em vez de preocupar-se em melhorar a si mesmo como ser humano e assim melhorar o mundo. O Manifesto diz, em seu final: “Os proletários não têm nada a perder, além dos seus grilhões, e têm um mundo a conquistar. Trabalhadores de todos os países, uni-vos!“.

A Essência do cristianismo, de Hegel, foi o livro que mais influenciou o jovem Marx. O deus que Feuerbach manteve numa formulação praticamente existencialista não era mais do que a essência do próprio homem: abstratamente e falsamente “objetificada” e então cultuada. O próximo estágio deveria ser, portanto, substituir o amor do homem por Deus pelo amor do homem pelo homem.

Um homem que ama a si próprio e aos semelhantes já é, naturalmente, um cristão, sem necessariamente acreditar em qualquer Deus. “Não é a consciência que determina a existência; é a existência que determina a consciência”, escreveu Marx. Um homem ignorante abandonado pela sociedade só poderá decidir entre a subordinação escrava e o crime.

Para Marx, o homem é moldado pela sociedade. Embora negasse a religião ele mesmo, jamais desconsiderou a qualidade dos sentimentos religiosos. Ironicamente, a vigorosa vida que existe dentro do marxismo, e especialmente a do marxismo-cristão do século 20, estava ruindo, pois os teólogos da Libertação perderam a guerra contra o clero evangélico-vigarista do estilo Igreja Redentor...

...Quando o lucro desculpa tudo, tudo é possível. As distinções de classe se tornam cada dia mais visíveis: os ricos, uma pequena classe média, um bolsão de pobreza e ignorância e outro de miséria física e mental. Os dois últimos blocos não pensam, são como personagens e assistentes do Big Brother. Votarão eternamente em Lula, pois não votam num nome, mas numa imagem na qual se vêem refletidos. Com dinheiro e armas é fácil para os algozes negarem que o trabalho de um homem produz um valor superior às suas necessidades.

O excesso (ou surplus) se transforma em capital para os proprietários da produção. Marx acreditava que um camponês, dono de sua terra, ao final do dia podia decidir se trabalharia uma hora a mais e se a dor na costas compensaria o lucro. O operário na fábrica não tem essa escolha. O diagnóstico de Marx é o de que o sistema capitalista não é, de modo algum, natural para seres humanos. Nele, o homem é um ser alienado da natureza e de si mesmo. Sente-se à parte do seu trabalho, porque não pode contribuir, com ele, para a comunidade. Ele é apartado de si mesmo, pois, embora trabalhe, não tem acesso aos resultados do próprio trabalho.

Uma das grandes falácias sobre o marxismo é que ele não dá suficiente importância à vida interior dos indivíduos. Ora, é somente quando se sente livre que o homem constrói sua individualidade e se torna senhor do seu destino. Só se consegue isso no capitalismo através da exploração, do roubo e da loteria esportiva, outra forma de roubo...

... Não há momento melhor para reconsiderar os argumentos de Marx à luz dos nossos tempos, à luz de métodos mais precisos e refinados de análise moderna. É preciso entender a hora de entregar alguns anéis para não perder os dedos.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O GRANDE IRMÃO MAIS PRESENTE DO QUE NUNCA


Resolvi publicar o texto "OS GRANDES IRMÃOS" no meu blog depois que vi duas reportagens na TV.

A primeira, na TV Brasil, um jornalista falava sobre o aparato tecnológico de comunicação dos EUA que pode gravar qualquer conversa feita por meio eletrônico no mundo. Além de comentar que é um caminho sem volta, o jornalista disse que este mesmo aparato está sendo usado para espionar empresas que concorrem com empresas americanas na competição por mercado.

A outra reportagem é do jornal HOJE, da Rede Globo,  onde a jornalista mostra câmeras vigiando os trabalhadores nas empresas, os funcionários vigiados são entrevistados e dão depoimentos conformistas e no fim, a matéria sugere que é uma “tendência” que veio para ficar.

O texto abaixo comenta o livro 1984, foi escrito em 2002. Uma década depois, a realidade que o autor do texto fala e imagina, já é uma realidade absoluta.

OS GRANDES IRMÃOS*

George Orwell, em 1984, atirou no que viu e acertou no que não viu. Muitas de suas previsões não se concretizaram exatamente até o ano de 1984 mas aos poucos os limites da vida privada se reduziram de uma forma que ele, logo após a Segunda Guerra Mundial, não podia prever: videovigilância na rua ou por satélite, internet, telefone celular, decifração do código genético e tantas outras novidades que irrompem a todo momento.

Aquilo que se passava, no romance de Orwell, numa Londres atravancada por ruínas de guerras passadas, sob vigilância do chefão do partido único, o Big Brother, insinuou-se agora na vida ordinária das pessoas, e atende pelo nome de progresso tecnológico. Toda tecnologia nova tem dois gumes. Pode ser usada para o bem ou para o mal. Incidentalmente as grandes invenções sempre se apresentam como ferramentas para facilitar a vida. O outro lado da moeda mostra que no trabalho, na rua, nas grandes superfícies, todo mundo vigia todo mundo.

Dois terços das grandes empresas americanas efetuam uma forma ou outra de vigilância eletrônica sobre seu pessoal. EUA, Inglaterra, Canadá e Austrália estão estabelecendo as bases de dados nacionais sobre o DNA dos criminosos.

Legais ou não, os meios de espionagem se tornam diabolicamente sofisticados e muito facilitados. Dia virá em que câmeras de vídeo do tamanho de uma abelha voarão numa peça para se fixar na parede ou no teto a fim registrar o que se passa ao redor. A baixa do preço e a miniaturização das câmeras (semelhantes à que o repórter Tim Lopes usava quando foi surpreendido tentando documentar o comércio de drogas nos bailes funk) permitirão em breve recorrer à videovigilância quase por toda parte e todo tempo. Do local de trabalho as pessoas poderão vigiar, na tela de seu computador, como se comportam os filhos em casa.

Cada vantagem induzida pela tecnologia - ruas seguras, comunicações baratas, lazer diversificado, serviços públicos eficazes, compras facilitadas - justifica a entrega de uma parcela de informação individual suplementar.

O físico inglês Duncan Campbell e grupos defensores das liberdades civis denunciam a interceptação, por parte da Agência Nacional de Segurança americana, de telefonemas, faxes e correios eletrônicos no exterior. Não apenas os EUA, mas dezenas de outros países possuem capacidade de interceptar ''qualquer tipo moderno de comunicação de alto consumo''. Até mesmo eleição eletrônica, com a qual os cidadãos votam por um sistema protegido por código, é sujeita a fraude.

O local de trabalho é o mais suscetível de ser espionado. A tentação da espionagem é grande entre empresas (prejuízo médio de 6% por causa de fraudes internas) que utilizam cada vez mais câmeras de vigilância, exames do conteúdo dos computadores, registros das chamadas telefônicas e, em alguns casos, detetives particulares. No Japão algumas empresas dispõem de banheiros que realizam automaticamente testes de detecção de entorpecente e filmam pessoas suspeitas de se drogar. O anti-herói de 1984 trabalhava no Ministério da Verdade num mundo regido contraditoriamente por três slogans: a guerra é a paz, a liberdade é a escravidão, a ignorância é a força. O problema já era de linguagem e História, o que a rigor ainda constitui a base da sociedade moderna. O requisitório de Orwell dizia respeito a uma ditadura absoluta. Já o progresso tecnológico desabrido da atualidade se realiza em países que se orgulham de suas democracias...

*Léo Schlafman, Jornalista. Jornal Brasil - 04 de julho de 2002.

domingo, 6 de janeiro de 2013

A Revolução do NÃO


O texto abaixo foi publicado em 1999 e registra um depoimento feito pelo escritor português José Saramago num congresso sobre a língua portuguesa realizado naquele ano. É interessante lembrar que há 14 anos atrás não existia a “guerra contra o terror”, o “mundo” ainda comemorava a queda do muro de Berlim e o “fim” da ideologia que ele sustentava... era um mundo sem barreiras, sem “efeito estufa” e de um neoliberalismo “vencedor”.

JOSÉ SARAMAGO, escritor português, Prêmio Nobel de Literatura de 1998* – “A primeira coisa que espero é que entendamos o tempo em que estamos vivendo. E suspeito que não estamos entendendo. Estamos a viver este tempo como estivéssemos em 1955 ou 1962. Estamos a viver um tempo que se quer já é 1999, fim do século. Já estamos no século 21. Estamos numa época em que vamos deixar de ser quem somos para nos transformarmos em outros. Quem serão esses outros? Não tenho idéia. Dou-lhes um exemplo que está ao alcance de toda a gente, porque todos lemos jornais.

É muito freqüente aparecerem artigos de pessoas com as quais estamos de acordo porque expõem idéias interessantes, opiniões críticas. Por muita razão que estas pessoas tenham, por esplêndidas que sejam suas propostas, por muita aguda que seja a crítica que fazem não acontece nada. Porque a primeira coisa que seria lógico acontecer não acontece. Ou seja, que o jornal ou a revista que publica esse artigo com o qual até o diretor está de acordo, eventualmente, mudasse a sua linha editorial.

Tudo acontece como se fôssemos tratados como os bobos da corte. O escritor hoje é uma espécie de bobo da corte, encarregado de dizer coisas heterodoxas, politicamente incorretas. Mas simplesmente não se muda nada. Nós somos a cereja que está aí para enfeitar o bolo e, vá lá, tentamos enfeitá-lo da melhor maneira possível.

Quando disse, na abertura deste congresso, coisa que se supõe muita gente sabe, que a Agência de Informação Americana (CIA) grava ou pode gravar todas conversações telefônicas do mundo transmitidas e veiculadas por satélite, houve pessoas que eu vi, estavam na minha frente, que ficaram assim, fazendo cara que não acredita. Uma ou outra rara assentiu. Pois essa é a realidade, queiram ou não queiram.

Eles estão atentos a tudo. Se eu disser qualquer coisa que pareça com IRA, ETA, ou se eu disser conspiração, ou se eu disser “às 17h vou ao dentista”, podem pensar que é um código. O Grande Irmão de Orwell existe. E não é o comunista, coitados, meros aprendizes cruéis, incompetentes (eu continuo a ser comunista como toda gente sabe). O Grande Irmão existe e nós nos comportamos como se nossas conversas telefônicas fossem confidências. Usamos o cartão de crédito como se fosse uma coisa completamente normal, e não é, porque se eu pagar em dinheiro em qualquer parte do mundo ninguém sabe onde estou e o que eu comprei. Agora, se eu pagar com cartão de crédito, sabe-se onde é que eu andei, o que eu comprei e desenhasse o perfil do consumidor. Porque nós vivemos no mercado. Somos uma espécie estranhíssima, algo que é vendido, porque é algo que está comprando. Na medida em que compra é vendido, na medida em que é vendido, compra.

É para esta consciência que estou a esperar que acordemos. A manipulação agora não é só da consciência, é também da genética. Corremos o risco de nos tornarmos habitantes de um mundo virtual, um mundo que não existe na realidade. E a realidade continua a existir como é. Estamos a precisar de uma revolução contínua, porque os outros já estão a fazer com a globalização, capciosa, que não percebemos. É preciso uma revolução do saber, da crítica sistemática, uma revolução do NÃO. Estamos num deserto de idéias. Os governos já não mandam nada. São comissários do capital econômico.

O desastre da Angola, da África, é uma das maiores tragédias da humanidade. Mas, como digo, há guerras com sorte e guerras sem sorte. Uma guerra com sorte é a guerra do Kosovo, toda gente fala dela. Guerra sem sorte são, por exemplo, a guerra de Angola, hoje. Foi a guerra de Timor, com 300 mil mortos, e disso ninguém fala.

Não quero roubar a tranqüilidade de vossas vidas, o que quero que compreendamos é que não podemos viver tranqüilos. Por isso espero tudo. Quando digo que nós somos uma pedra esfolada debaixo da qual não há nada, já é num outro plano, é simplesmente porque temos que morrer e quando acabarmos ficará a memória durante um tempo e tudo se acaba depois. Quem aqui está a ler a Ilíada, de Homero? Ninguém! Pois, então. Eu, como escritor, não tenho responsabilidade. Mas como cidadão sim.”

* Jornal do Brasil, 14/08/1999, Caderno B